quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A Estrada Foi Longa e Ele Chegou Lá

Fiquei ausente por alguns dias pois não sabia como começar a escrever algo que jamais imaginei que um dia iria escrever. Ainda não tenho certeza da melhor forma de começar, mas, pelo menos, resolvi tentar colocar no papel o que estou sentindo no meu coração.
Após cerca de cinco anos acompanhando basicamente dia após dia uma mente brilhante ser apagada, linha por linha, parágrafo por parágrafo, página após página. No começo tudo era motivo de brincadeiras por parte dos amigos do clube e de nós, seus familiares. Seus lapsos de memória eram até que engraçados. 
Começando lá pelos idos dos anos setenta, quando eu e os meus irmãos estávamos na adolescência, para ele lembrar os nomes dos nossos amigos, era um evento raro. Ele referia-se a todos como “o menino”. Duro era saber de qual menino ele estava falando.
Quando se lembrava de algum nome, quase sempre trocava a pessoa, quantas vezes trocou o nome de um pelo do outro! 
Apesar desses pequenos lapsos de memória, todos gostavam do seu jeito divertido, sempre pronto para contar uma piada, cantar uma música ou falar algo divertido. Ele se dava muito bem com público de todas as idades. Diga-se de passagem, isso era a sua vida: o público, o palco e as palmas.
Todos o admiravam muito, principalmente quando ele conseguia colocar o grupo todo para dançar as Noites de Carnaval do Palmeiras sem pagar. Dava muito orgulho a mim e ao meu irmão quando a orquestra começava a tocar uma das suas inesquecíveis marchinhas de Carnaval e nossos amigos nos olhavam e gritavam, para nós:
     -“Pontinho pro Barrellão!” 
Pensando bem, hoje tenho certeza de que ele não nasceu, ele estreou no dia do seu nascimento. Seu choro foi apenas a sua primeira apresentação em público e desse dia em diante foram incontáveis as apresentações.
Era muito legal vê-lo na televisão cantando suas marchinhas nos programas “Almoço com as Estrelas” e o “Clube dos Artistas”, do casal Airton e Lolita Rodrigues, na extinta TV Tupi. Antes de sair de casa ele passava um talco na sua carequinha e na hora de sair ele se perfumava todo e tirava aquele talco. Sua justificativa era que aquilo “tirava o brilho metálico” que aparecia devido aos holofotes do estúdio da Avenida Dr. Arnaldo, em São Paulo.
Lembro-me também como se fosse hoje o troféu que ele ganhou no Programa “Discoteca do Chacrinha” por fazer uma música durante o programa, tendo como tema: A Garota que Passa! Também não consigo esquecer o dia em que, com uma bolada eu derrubei o troféu da prateleira e ele se partiu. Felizmente o bom marceneiro Sidnei, o consertou sem deixar vestígios e ainda hoje ele se encontra no mesmo canto da mesma prateleira, junto a tantos outros que ele recebeu ao longo de sua vida-carreira.
O pai de nenhum dos nossos amigos aparecia na televisão e nós sentíamos muito orgulho daquilo tudo.
Sua vida cotidiana, no entanto, não tinha qualquer glamour, pois ele dedicou sua vida a uma carreira como bancário, numa época em que os bancários trabalhavam de gravata e paletó. Todos os dias antes de sair de casa para pegar o ônibus que o levava da Lapa para o Centro de São Paulo, para a Agência do BASA – Banco da Amazônia, ele cuidadosamente engraxava o seu par de sapatos. Sua camisa sempre tinha que estar impecavelmente passada e o seu terno era sempre muito bem cortado, normalmente feito a mão por algum habilidoso alfaiate. 
Tinha então a gravata. Ah, a gravata para ele era coisa muito séria! Ele sempre fez questão de comprar suas próprias gravatas e quando as ganhava de presente, dificilmente as usava, pois para ele gravata era realmente coisa muito séria.
Depois de cuidadosamente pentear os poucos cabelos que ainda lhe restavam desde os trinta e poucos anos, passava sempre um perfume de marca para completar o personagem e pronto, ao trabalho!
Foi uma rotina de uma vida inteira, trinta e dois anos de trabalho como bancário e muitas e muitas noites correndo de baile em baile para cantar as suas marchinhas de carnaval pelos bailes paulistanos, que se reverteram em uma casa boa, três filhos muito bem criados e formados na faculdade e algumas economias para desfrutar da melhor idade sem ter que depender de ninguém. Ele pensou em tudo, tudo mesmo!
Infelizmente não houve muito tempo para que ele desfrutasse do que construiu.
Tudo estava correndo perfeitamente dentro do planejado, até que começaram os esquecimentos. Sua chave do armário e do carro ficarem sobre o banco do vestiário virou folclore no Palmeiras. Quem a encontrava já sabia que era dele.
Depois foi o caminho de casa que momentaneamente fugiu-lhe da memória, uma ou outra coisinha sem muita importância até que o alemão, o tal do Alzheimer resolveu visitá-lo e nunca mais abandoná-lo. 
Depois dos pequenos esquecimentos, começaram outros mais significativos e depois veio a depressão trazendo consigo os grandes esquecimentos. Quantas vezes ele não me reconheceu em casa, ou durante as consultas com a Psiquiatra, quando dizia que eu era o amigo do seu enfermeiro, enfim, uma maldita borracha foi apagando dia a dia as suas lembranças. Não foi fácil viver essas experiências, mas fazer o que? Depois de toda a dedicação dele para comigo, era o mínimo que eu tinha a obrigação de fazer. Era minha obrigação fazer daqueles momentos de angustia e tristeza com o seu estado, momentos alegres, sempre transformando a tristeza em brincadeira até que num momento subseqüente ele se lembrasse que eu era o seu filho. Eu fazia de conta que era divertido e brincava com ele, mas no fundo eu sabia o quanto era difícil passar por aquelas situações. 
Ele teve uma vida muito boa. Após sair de Manaus em 1953 para começar uma vida a partir do zero numa cidade como São Paulo, principalmente com o sonho de ser músico e viver de sua arte, ele foi muito mais longe do que ele mesmo poderia imaginar quando saiu de casa para nunca mais voltar.
Ele e minha querida e admirável mãe comeram realmente o pão que o cão do Diabo amassou, sozinhos com três filhos pequenos sem ter com quem contar a não ser com eles mesmos. Ela sempre uma mãe prestimosa e dedicada a ele, à casa e aos filhos e ele, sempre trabalhando pelo nosso pão de cada dia. 
Eles são realmente grandes vencedores.
Graças a esse esforço de ambos hoje somos uma família do bem! Todos casados com parceiros maravilhosos, com filhos maravilhosos. São sete netos que sempre o encheram de orgulho e sobre quem ele falava para todos os amigos com a boca e o coração cheio de orgulho, no entanto, o grande mérito foi dele que sempre nos educou no caminho do bem, da honestidade, do trabalho e da força.
Numa de suas mais belas músicas ele diz:
     -“Sei que a estrada é longa, mas eu chego lá!” E ele chegou, ah, se chegou!
Desde aquela hora em que eu cheguei à sua casa no meio da madrugada e o encontrei em seu sono eterno, restam-me dele apenas o exemplo e as boas lembranças, pois as lembranças ruins, se é que existiram um dia, já foram esquecidas, pelo menos por mim que foi quem mais o contestou e com quem ele mais brigou. Acho que por isso hoje sou a pessoa que sou, ele me treinou para ser um verdadeiro homem.
Eu seria capaz de passar muitas horas e até dias escrevendo sobre essas boas lembranças, mas realmente não consigo mais! Acho que vai ter que ficar para outra ocasião.
Não foi fácil chegar até aqui, e é impossível ir além, não que ele não mereça, mas eu não consigo.
Sei que escrevi uma pequena colcha de retalhos, meio sem pé e nem cabeça, mas coloquei no papel algumas coisas que sempre quis compartilhar com alguém e nunca o fiz.
Esteja bem Barrellão, você é um grande vencedor! 
Finalmente você encontrou o seu tão desejado "deserto para poder se encontrar"!
Esteja onde estiver nunca deixe de animar o seu público e tenha a certeza de que um dia todos os Barrellas estarão novamente juntos cantando ao som do seu violão!
Eu amo você!

3 comentários:

  1. Belmiro, querido amigo, estou aqui emocionada,quase aos prantos, sem saber ao certo o que dizer, enquanto lia seu texto as imagens vinham a minha cabeça e fazia um paralelo com a história de meus pais. Sei como é difícil ver o "pai-herói" doente, envelhecendo e chegando ao fim dos seus dias, o meu já não me reconhece há algum tempo e sofre com as sequelas de vários AVC´s. Mas tenho certeza que o S. Barrelão ficou extremamente emocionado, assim como eu, quando viu essas lindas palavras em sua homenagem! Força amigo,beijos. Isabel Camañes

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  2. Pai...
    nem sei o que lhe escrever.. estou realmente chorando muito e mtu emocionada com esse texto..
    Tenho certeza que o Vovô esta olhando por todos nós e com certeza muito feliz de ver que todos nós nos orgulhamos dele..
    Ja sinto uma imensa saudades dentro de mim que não tem como explicar.. mais sei que ele está bem e que agora esta cantando e divertindo o pessoal la em cima..

    Pai, TE AMO MAIS DO QUE TUDO...
    Você é sensacional...
    Continue assimmm..

    Bjos da sua fã numero 1
    Mila

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  3. Belmiro, linda mensagem de um filho com o coração partido pela passagem de seu querido pai para o plano espiritual... Tenha certeza de que de lá..."ele" esboçou um largo sorriso de alegria em agradecimento à você!!!
    Beijos afetuosos no seu coração!!!

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